Professores burlam contrato e lesam em milhões universidades públicas

Por Cristiane Capuchinho – iG São Paulo | 

Mesmo recebendo bonificação para trabalhar exclusivamente para universidade, professores mantêm escritórios de advocacia, atendimentos médicos e serviços privados

Professores de universidades federais com contrato de dedicação exclusiva – que prevê 40 horas de trabalho e proíbe outros vínculos empregatícios – fazem consultorias, atendem em consultórios particulares, em escritórios de advocacia e mantêm outras atividades. A prática se repete em diversas instituições públicas do País e lesa em milhões o orçamento da educação superior, além de prejudicar a qualidade do ensino e da pesquisa. Segundo o Censo da Educação Superior, 88,20% do total de professores das federais trabalham em regime de dedicação exclusiva.

A irregularidade, conhecida dentro das instituições por professores e alunos, aparece em processos do Ministério Público Federal e em auditorias da Controladoria Geral da União. As investigações, pontuais, em geral exigem a devolução dos valores recebidos pela dedicação exclusiva, o que pode significar montantes de até R$ 400 mil por professor.

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Em Minas Gerais, o Ministério Público Federal entrou com ação judicial no início deste ano contra cinco professores da Faculdade de Medicina da UFMG, acusados de receber remuneração da Unimed por atendimentos em clínicas particulares. Sem revelar o valor exato devido por cada um dos professores, o MPF afirma que todos devem ressarcir a universidade em valores acima de R$ 100 mil, sendo que em ao menos um dos casos a quantia devida chega a R$ 250 mil.

Antes do início da ação judicial, o MPF chegou a procurar os cinco professores e uma sexta docente aposentada para propor um termo de ajuste de conduta. A professora aposentada foi a única a assinar o acordo e se comprometer a devolver R$ 236 mil à universidade.

No Rio Grande do Norte, o MPF entrou com uma ação de improbidade contra umaprofessora de Direito da UFRN. A docente continuava a atuar como advogada em pelo menos 17 ações judiciais após assinar contrato de dedicação exclusiva com a universidade. O MPF pede que a professora devolva R$ 135 mil aos cofres públicos, valor referente à bonificação de dedicação exclusiva recebida por ela ao longo de seis anos.

A consulta eletrônica no TJ-RN indicou sua participação em 47 processos judiciais em primeira instância e 33 em segunda instância, além de outros 31 na Justiça Federal do Rio Grande do Norte. Na investigação, foram reunidas mensagens de celular em que a professora da UFRN negociava o valor de seus honorários com clientes.

Em abril, a universidade ainda apurava 41 processos contra professores com possíveis irregularidades, segundo a pró-Reitora de Gestão de Pessoas da UFRN, Mirian Dantas dos Santos. De acordo com ela, no ano passado a universidade condenou quatro servidores pelo mesmo tipo de irregularidade a devolver a bonificação de dedicação exclusiva à instituição. Até abril de 2015, a UFRN havia recebido R$ 867 mil dos servidores.

Em auditoria feita pela Controladoria Geral da União na Universidade Federal do Espírito Santo em 2014, os fiscais encontraram um professor que deve, sozinho, devolver R$ 409,3 mil pelo recebimento indevido de gratificação por dedicação exclusiva. O relatório aponta o descumprimento do regime de trabalho entre julho de 1998 e 2005. Segundo a Ufes, o processo administrativo está em andamento.

O relatório apontava ainda outro professor que teria de devolver R$ 36 mil por descumprir seu contrato de exclusividade entre os anos de 2002 e 2004. A Federal do Espírito Santo afirma que, nesse caso, o acordo para ressarcimento já foi assinado.

No Rio Grande do Sul, o MPF denunciou por estelionato 14 professores de odontologia da Universidade Federal de Santa Maria. Os professores, com contratos de dedicação exclusiva, mantinham consultórios particulares e davam aulas em outras instituições de ensino.

Paula Schirmer, procuradora da República de Santa Maria, conta que há anos o MPF tem recebido com certa frequência relatos e denúncias a respeito de casos de irregularidades cometidas por professores de dedicação exclusiva. Além dos 14 casos em que ações já foram abertas, ela informa que “seis inquéritos policiais ainda seguem em andamento, apenas em relação ao curso de odontologia, e ainda há investigações em curso a respeito de docentes do curso de medicina”.

Prejuízo ao ensino

O contrato de dedicação exclusiva é tido como prioritário pelo Ministério da Educação e pelas universidades federais para que os professores tenham maior comprometimento com a pesquisa e com a pós-graduação. Por conta dessa garantia, os professores recebem uma importante bonificação no seu salário. Após 3 anos de carreira, o salário do doutor com dedicação exclusiva é de R$ 10 mil mensais frente a R$ 5,8 mil para docentes que trabalham 40 horas semanais sem exclusividade. Em final de carreira, o doutor com regime de dedicação exclusiva alcança o salário de R$ 17 mil mensais e seu colega sem dedicação exclusiva tem salário de até R$ 7,9 mil.

Mesmo sob o regime de contrato de exclusividade, os professores podem receber esporadicamente por participações em eventos científicos ou palestras, receber bolsas de agências de fomento ou organismos nacionais ou internacionais, ganhar direitos autorais ou direitos de propriedade intelectual e até participar de trabalhos eventuais em empresas privadas com permissão da universidade por, no máximo, 240 horas ao ano.

“Não é a maioria dos professores que ganha dinheiro dessa forma irregular, são poucos. O que temos dentro das universidades são alguns contratos em que professores ganham muito dinheiro, muitas vezes via fundações”, afirma Paulo Rizzo, presidente do Andes-SN (Sindicato da categoria). Para o sindicato, esse tipo de fraude prejudica o ensino e a pesquisa das universidades.

“Em se tratando de atividades remuneradas, elas invariavelmente concorrem com sua dedicação para a universidade. Se o professor recebe [um valor extra] para fazer uma coisa e não recebe para fazer sua pesquisa, ele vai se dedicar mais para fazer essa [consultoria ou atividade extra] do que a pesquisa ou a aula”, considera.

Dificuldades de fiscalização

Como os professores não têm horário definido para atuar nas atividades de pesquisa e extensão, as universidades federais têm dificuldade para controlar o trabalho dos seus mais de 68,4 mil docentes sob regime de dedicação exclusiva. Em geral, os docentes devem dar, ao menos, oito horas de aulas semanais e cumprir dois turnos dentro da universidade com suas demais atribuições, sem horário definido para isso. Para comprovar suas atividades, os professores entregam relatórios para as universidades em que apontam o tempo dedicado para cada uma de suas funções.

De acordo com o Ministério da Educação, as universidades são autônomas e cabe a elas a fiscalização do cumprimento de contratos por seus profissionais. No entanto, a falta de eficiência no controle dentro das universidades é apontada por auditorias da Controladoria Geral da União. Seus relatórios têm indicado sistematicamente a existência de funcionários de universidades federais com contrato de dedicação exclusiva e que são sócios ou mantêm vínculos empregatícios em outras instituições públicas ou privadas.

Ao menos sete dos 25 relatórios de auditoria feitos pela CGU em 2014 apontam graves irregularidades.

Em 2012, o Tribunal de Contas da União fez auditoria em 19 universidades e institutos federais e flagrou ao menos 3.000 servidores, entre técnicos e professores, com mais de um contrato de trabalho apesar de ter dedicação exclusiva ou contratos que somavam jornadas de trabalho impraticáveis.

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Cruzamento de dados e denúncias

Para mapear os casos, é feito o cruzamento dos dados da Rais (Relação Anual de Informações Sociais) e do Siape (Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos) com o banco das federais. Foi assim que se descobriu dois professores da UFPB que mantinham vínculos com instituições privadas: um com Centro Nordestino de Ensino Superior Faculdade de Ciências Médicas e o outro com o Instituto Paraibanos de Educação (Unipê).

Em relatório da CGU de 2014 sobre a Federal de São Carlos (Ufscar), a auditoria indica ao menos 13 professores que aparecem como sócios ou gerentes de instituições privadas e outros 16 docentes com indícios de quebra de contrato. Nos dois casos, os auditores apontam que faltam mecanismos internos de fiscalização eficientes para evitar esse tipo de situação.

Também a partir do cruzamento de dados sobre o quadro docente com a Rais, a auditoria da CGU encontrou 18 professores com atividades remuneradas irregulares no IFMT (Instituto Federal do Mato Grosso). O relatório estima um prejuízo de R$ 224.940,66.

Quando há vínculos de emprego do docente com outra empresa ou com empresa própria é mais fácil de mapear a irregularidade. As incongruências são apontadas para a instituição federal, que é responsável por verificar a irregularidade e punir o profissional, caso ela se comprove.

 

No entanto, descobrir casos em que os professores prestam serviços privados sem contratatação é mais complicado e costuma ser fiscalizado apenas após denúncia. Em 2013, quatro professores de Direito da Universidade de Brasília assinaram um acordo em que se comprometiam a devolver R$ 1,12 milhão para o caixa da instituição. Os quatro eram acusados de manter atividade como advogados enquanto recebiam como professores de dedicação exclusiva. A denúncia foi feita ao MPF por estudantes da instituição.

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Morosidade no processo

Um dos problemas relatados em diversos relatórios do órgão federal de fiscalização é a fragilidade da fiscalização e a demora para a apuração dos casos em que há indícios de corrupção.

A UFPB recebeu ainda em 2013 uma lista com 102 casos de professores submetidos ao regime de dedicação exclusiva com indícios de exercício de outras atividades remuneradas. A auditoria da CGU de 2014 indica a morosidade dos processos, que ainda não tinham respostas em meados do ano passado.

Após elencar os problemas, o relatório conclui “que os procedimentos de apuração dos casos de potenciais acúmulos de cargos e de exercício de atividades incompatíveis com o regime de trabalho dos servidores da UFPB são extremamente precários e morosos, havendo a necessidade urgente de reestruturação da equipe responsável.”

Procuradores e professores ouvidos pela reportagem dizem que por vezes faltam métodos de controle, pessoal e interesse dos servidores na fiscalização de colegas. O relatório de auditoria da Federal de Goiás (UFG) diz que a demora implica em um tipo de “anuência” da instituição.

“A manutenção desse padrão de apuração por parte da UFG implica numa consequência bastante importante: a acumulação de cargos pelos docentes, quando irregulares, não trazem quaisquer consequências legais ou administrativas a eles, desde que, à época da emissão do parecer da comissão, já estejam com a situação regularizada. Assim, a morosidade apontada acaba por se transformar em uma “anuência” da UFG para a ocorrência sistemática de casos como este, uma vez que alimenta essa prática”, afirma o texto.

Para driblar esses problemas, alunos e professores levam suas denúncias ao Ministério Público.

“Sem dúvida que a universidade terá mais facilidade de apurar se tiver notícia de um caso, mas isso não afasta a obrigação da universidade de ter rotinas para detectar as irregularidades. Ela deve exigir exigir com frequência que os professores assumam exclusividade, devem pedir relatórios de atividades mais amiúde, controle de frequência”, indica o procurador da República Sérgio Pinel, representante do MPF no Rio de Janeiro.

 

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