A educação não cognitiva ganha espaço

 Folha de São Paulo – 15/03/15 – Érica Fraga

RESUMO Após pesquisas nos Estados Unidos pelo menos desde os anos 60, o ensino pautado mais por traços da personalidade e menos pela inteligência começa a ganhar espaço em escolas públicas do Brasil. A educação não cognitiva estimula capacidades como autodisciplina, curiosidade, persistência e resiliência.

A estudante carioca Laís Ferreira, 16, discorre com firmeza diante de uma pequena plateia sobre seus planos para o futuro: “Quero ser cientista e descobrir como controlar a fusão nuclear”.

Mas não foi sempre assim. Há um ano, quando ingressou no Colégio Estadual Chico Anysio, Laís tremia cada vez que lhe passavam a palavra. Em uma apresentação, chegou a “congelar” e ficar olhando para o teto sem conseguir falar.

Localizado no bairro de Andaraí, no Rio de Janeiro, e inaugurado em 2013, o Chico Anysio tem aparência de escola convencional, mas o cotidiano dos alunos de classe média baixa que o frequentam difere bastante da realidade das salas de ensino médio público tradicionais.

No currículo de horário integral, aulas de matemática, português e história se misturam com a elaboração de projetos em que determinação, autonomia, desenvoltura e curiosidade são os protagonistas.

Segundo os professores, esses trabalhos estimulam os alunos -que prestam prova para ingressar na escola- a se preparar, pesquisar, interagir e cooperar.

Laís concorda. Integrante de um grupo que pesquisava a existência de vida fora da Terra no ano passado, ela se apaixonou por ciências e, à medida em que começou a dominar o assunto, foi perdendo a timidez. “Na minha escola anterior, só o professor era dono da palavra. Eu achava que tudo o que eu falasse seria inferior. Então, me acostumei a ficar quieta.”

A baixa autoestima de Laís é um aspecto comum dos alunos de sua faixa etária no ensino público do Rio de Janeiro. A constatação surgiu de uma avaliação feita com os estudantes pela Secretaria Estadual de Educação há cerca de três anos. Em busca de uma saída para reverter esse quadro e melhorar a aprendizagem, o governo fez uma parceria com o Instituto Ayrton Senna (IAS) para transformar a maneira de ensinar.

A fórmula adotada se baseia nos resultados de uma nova corrente de pesquisa que indicam grande importância de alguns traços da personalidade, como disciplina e autocontrole, para o desempenho escolar.

TALENTOS

A curiosidade sobre como características pessoais influenciam o sucesso individual é antiga. Em “A República”, Platão se referia, de forma metafórica, às almas de ouro, prata e bronze como atributos que talhavam os homens, respectivamente, para o exercício do governo, da guerra e das atividades manuais.

A busca incessante da humanidade pelo aumento do bem-estar social é o elemento que permeia o interesse pelas chaves do desenvolvimento dos talentos de cada indivíduo.

Mas, com o passar do tempo, consolidou-se a crença de que um único fator -a inteligência- fazia, de fato, a diferença. É o que o jornalista americano Paul Tough chama de “a hipótese cognitiva” em seu best-seller “Uma Questão de Caráter” (Intrínseca, 2014).

Talvez tenha contribuído para essa primazia a maior facilidade em se mensurar as habilidades cognitivas, que incluem a capacidade de leitura, de fazer contas e de identificar padrões.

O primeiro teste de inteligência moderno foi desenvolvido no início do século passado por Alfred Binet e Théodore Simon. Um pouco depois, a chamada escala Binet-Simon seria aprimorada por Lewis Terman e se consolidaria, com alguns ajustes, como o teste de QI que conhecemos hoje.

A motivação de Binet era justamente identificar casos de atraso cognitivo nas escolas públicas de Paris para que fossem desenvolvidos programas educacionais destinados a ajudar as crianças com dificuldades.

Pelo mundo afora, surgiram políticas públicas com objetivo parecido. Uma das intervenções mais badaladas ocorreu na cidade de Ypsilanti, em Michigan, nos Estados Unidos, no início da década de 60, com o nome de Perry Preschool. Com foco na primeira infância, o programa recrutou crianças vulneráveis socialmente e com baixo QI e as dividiu em dois grupos.

Um deles foi matriculado em uma escola na qual bons professores os estimulavam a fazer escolhas e desenvolver suas próprias ideias. O outro -chamado nesse tipo de estudo de grupo de controle- seguiu o curso normal de sua vida na pobreza.

Ambos foram acompanhados por pesquisadores até a idade adulta. Os primeiros resultados da intervenção foram animadores. As práticas pedagógicas implementadas fizeram com que o grupo de tratamento tivesse desempenho muito melhor que o de controle em testes de inteligência feitos ainda na idade pré-escolar.

Esses ganhos cognitivos, porém, se dissiparam com o tempo. Aos dez anos, a capacidade intelectual dos alunos que passaram pelo Perry, então matriculados em escolas públicas normais, tinha se igualado novamente à das crianças deixadas à própria sorte desde o início. Foi um balde de água fria nos idealizadores do projeto.

No entanto, com o passar das décadas, apesar dos níveis de inteligência próximos, as crianças submetidas à experiência do Perry foram mais bem-sucedidas na vida do que as do grupo de controle.

E isso se verificava num amplo leque de mensurações: mais escolaridade, maior chance de estar empregado aos 27 anos, salários cerca de 40% mais altos que a média aos 40, menor incidência de envolvimento com atividades ilícitas e por aí vai.

Esses resultados interessaram James Heckman, professor da Universidade de Chicago. Ganhador do prêmio Nobel de Economia em 2000 pela elaboração, na década de 70, de um modelo estatístico sofisticado, Heckman tem colocado seu prestígio e sua extraordinária habilidade com cálculos complexos a serviço de áreas como desenvolvimento na primeira infância.

Intrigado pelos efeitos do Perry, ele se debruçou sobre relatórios que compilavam observações dos professores acerca do comportamento das crianças.

Depois de três anos de análise, Heckman e sua equipe concluíram que características como curiosidade, autocontrole e facilidade de relacionamento com os demais -batizadas de habilidades não cognitivas ou competências socioemocionais- explicavam nada menos do que dois terços dos ganhos advindos da participação no Perry.

Os resultados dessas pesquisas, que começaram a ser publicadas em 2010, confirmavam indícios captados por experimentos anteriores, como o teste do marshmallow feito no fim da década de 60 pelo psicólogo Walter Mischel.

Buscando analisar técnicas usadas para controlar o impulso infantil, Mischel submeteu crianças de quatro anos a uma escolha difícil. Sentadas sozinhas, uma de cada vez, em uma sala, elas precisavam decidir entre tocar um sino e comer o marshmallow imediatamente ou esperar um pesquisador voltar e faturar dois doces em vez de um.

Mais de uma década depois de realizar o teste, Mischel voltou a procurar os participantes do experimento, já adolescentes, e descobriu que as crianças que conseguiram esperar mais tempo antes de devorar a guloseima tiveram desempenho acadêmico muito superior às outras.

Os achados de Mischel ofereciam pistas sobre a importância das competências socioemocionais. Além de avançar nessas conclusões, os estudos de Heckman pareciam indicar possíveis caminhos para o desenvolvimento dessas habilidades.

“As crianças do Perry não recebiam instruções diretas. Os professores as estimulavam a fazer suas escolhas, iam fazendo perguntas, dando sugestões. Isso ajudou a desenvolver autoconfiança e curiosidade”, diz o economista brasileiro Flávio Cunha.

Hoje professor da Universidade Rice, Cunha trabalhou com Heckman em pesquisas sobre habilidades não cognitivas durante seu doutorado em Chicago. Segundo ele, quando começaram, há pouco mais de dez anos, era difícil encontrar pesquisadores interessados pelo tema: “Nos intrigava o fato de que as grandes empresas davam valor a essas características e a academia não”.

CONSCIENCIOSIDADE

Mesmo na psicologia, essa linha de estudo interessava poucos especialistas, normalmente ligados a departamentos de recursos humanos. Mas havia exceções. Uma delas era a pesquisadora Angela Duckworth, da Universidade da Pensilvânia. Orientada pelo renomado psicólogo Martin Seligman no doutorado, Duckworth focou sua pesquisa na importância da autodisciplina para o desempenho escolar.

Em um teste conduzido pelos dois entre 2002 e 2003, foram medidos tanto a autodisciplina quanto o QI de alunos que iniciavam o último ano do ensino fundamental. A conclusão surpreendente dos pesquisadores foi que esse traço da personalidade era um indicador muito mais forte do desempenho escolar futuro dos adolescentes do que sua inteligência.

A autodisciplina é considerada uma faceta da “conscienciosidade”, que abrange outras características como organização, persistência e resiliência. A conscienciosidade, por sua vez, é um dos cinco atributos que formam os chamados “big five” (os grande cinco) da psicologia. Os outros quatro são: abertura a experiências (que inclui curiosidade e criatividade), extroversão, amabilidade e instabilidade emocional (ou neuroticismo).

Ao mensurar o impacto dessas características sobre resultados concretos na vida de crianças e adolescentes -descontando dos mesmos os efeitos causados apenas pela inteligência- as pesquisas têm forte apelo por dois motivos principais.

O primeiro é a indicação de que traços de personalidade podem ter um impacto próximo, igual ou até maior do que a inteligência na determinação do sucesso escolar. Crianças curiosas e com maior propensão a cooperar com os demais tendem a atingir maior escolaridade do que outras que não tenham essas características bem desenvolvidas. Traços como perseverança, disciplina e responsabilidade (reunidos sob o guarda-chuva da conscienciosidade) levam não só a mais anos de estudo, como também a melhor desempenho no trabalho, maior longevidade e menor propensão a envolvimento com crime e violência.

O outro aspecto das habilidades não cognitivas que tem animado estudiosos e educadores é sua maleabilidade. Estudos indicam que, ao contrário da inteligência -que se torna relativamente estável e difícil de ser alterada a partir de aproximadamente 11 anos-, as competências socioemocionais continuam flexíveis, em alguns casos até a vida adulta.

“Isso é importante do ponto de vista de política pública”, afirma o economista Daniel Santos, da USP.

Santos participa de um pequeno grupo de pesquisadores que, junto com o IAS, tem estudado as habilidades não cognitivas no contexto brasileiro. Seu principal trabalho até agora foi uma avaliação do impacto das competências socioemocionais sobre a aprendizagem de mais de 20 mil alunos da rede pública estadual do Rio.

Os resultados indicaram, por exemplo, que estudantes conscienciosos conseguem notas mais altas em matemática. Os mais curiosos tendem a se destacar em português.

A OCDE (Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômicos), que reúne países ricos e alguns emergentes importantes, também voltou seu olhar -há três anos- para as habilidades não cognitivas. E, na última semana, lançou o livro “Skills for Social Progress” (habilidades para progresso social), parte de um novo projeto da instituição, no qual afirma que as competências socioemocionais não funcionam de forma isolada, mas que sua interação com a capacidade cognitiva aumenta as chances de sucesso das crianças.

“As habilidades não cognitivas podem ser tão importantes quanto as cognitivas para resultados educacionais, do mercado de trabalho e sociais”, diz Koji Miyamoto, do Centro para Pesquisa Educacional e Inovação da OCDE.

Além do livro, o novo projeto da organização, coordenado por Miyamoto, incluirá uma pesquisa própria com coleta de dados a partir de 2015. O objetivo é chegar a um diagnóstico próprio mais preciso para orientar a formulação de políticas públicas, jogando luz em áreas ainda obscuras, como as habilidades que seriam mais relevantes e como elas poderiam ser desenvolvidas.

AVALIAÇÕES

A mensuração das competências socioemocionais é outro ponto a avançar. As avaliações que indicam quem é mais ou menos consciencioso ou curioso se baseiam na opinião de pais, professores e dos próprios estudantes.

O problema é que ser dedicado pode significar estudar três horas por dia em casa para um aluno e seis horas para seu vizinho. Os pesquisadores se dedicam atualmente a elaborar mecanismos de ajuste que façam com que as respostas de diferentes indivíduos sejam comparáveis.

Apesar dessas lacunas que precisam ser fechadas, iniciativas que buscam integrar o estímulo ao desenvolvimento de habilidades não cognitivas ao currículo escolar começam a se expandir.

“Toda criança do meu distrito escolar precisa saber o que significa ser resiliente”, diz Jennifer Adams, secretária de Educação da rede pública de Ottawa-Carleton. O distrito escolar canadense é um dos pioneiros dessa nova linha educacional que procura ir além do conteúdo das disciplinas. Para aprender resiliência, os alunos pesquisam como os líderes do país desenvolveram e demonstraram a habilidade.

No Brasil, além do Rio de Janeiro, experiências com foco nas habilidades não cognitivas têm surgido em outros lugares, como a cidade de São Paulo, onde alunos dos últimos anos do ensino fundamental desenvolvem os chamados trabalhos colaborativos de autoria.

Na Escola Municipal de Ensino Fundamental Vargem Grande, por exemplo, um grupo de alunos elaborou a proposta de criação de uma praça depois de pesquisar e identificar a carência de áreas de lazer. “Como as propostas partem deles, eles ficam mais motivados e, à medida que vão pesquisando, se sentem mais donos daquele conhecimento”, diz Gilvana Oliveira Prado, coordenadora pedagógica da escola. A rápida evolução tecnológica faz com que essa capacidade de aprender a aprender se torne mais valorizada.

“Essas habilidades serão, cada vez mais, habilidades de sobrevivência”, diz a jornalista Amanda Ripley, autora do livro “As Crianças Mais Inteligentes do Mundo” (Três Estrelas, 2014).

Conforme computadores assumem as atividades repetitivas, aumenta a importância de profissionais que consigam pesquisar, inovar e encontrar soluções para problemas.

Pesquisadores do tema, como Richard Murnane, de Harvard, ressaltam a importância de ativos como um amplo vocabulário para lidar com esses desafios. O problema é que crianças de classes sociais menos favorecidas já largam em flagrante desvantagem em quesitos como a linguagem.

Os estudiosos Betty Hart e Todd Risley mostraram que crianças pequenas nascidas em famílias de profissionais qualificados dominam um vocabulário de aproximadamente 1.100 palavras, mais do que o dobro das 500 usadas por aquelas cujos pais vivem de transferência de renda.

O modelo de ensino tradicional em que o mestre fala e o aluno escuta e anota se encarrega de ampliar esse hiato até a adolescência. Não por acaso muitos alunos do Chico Anysio relatam ter enfrentado grande dificuldade inicial em interagir com os demais. “Passei seis meses sem falar com ninguém”, conta Marcos Vinicius Bento, 16. O estímulo da nova escola à curiosidade tem contribuído para que ele descubra o prazer e a utilidade da
linguagem. Menos tímido, passou a participar das discussões das aulas e sessões de projetos e até a vender aos amigos bottons feitos pelo primo, a fim de ajudar no orçamento familiar.

A conquista da comunicação descrita por Marcos é o que pesquisadores esperam que possa acontecer em maior escala se mais escolas se abrirem ao estímulo do desenvolvimento das competências socioemocionais. Por enquanto, tanto os que se dedicam à pesquisa do assunto quanto os que implementam políticas com base nos estudos existentes comemoram os indícios alentadores.

No Rio, um deles é o fato de que os alunos da Chico Anysio têm obtido resultado 60% acima da média da rede em avaliações bimestrais feitas pelo governo.

“O que estamos tentando mostrar é que não é verdade que se você é pobre e se seus pais não têm escolaridade elevada você não vai conseguir”, diz Antônio Neto, secretário de Educação do Rio.

 

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