1º médico indígena da UnB diz que se sentia “estranho” entre intelectuais


Raquel Morais – G1 Globo.com – 18/02/2013 – Rio de Janeiro, RJ

O mês de fevereiro começou especial para uma aldeia do sertão de Pernambuco, a pouco mais de 400 quilômetros de Recife. Sete anos após deixar a família e a rotina que levava como professor, o atikum Josinaldo da Silva, de 35 anos, se tornou o primeiro indígena formado em medicina pela Universidade de Brasília (UnB). O diploma era um sonho antigo do nordestino.

Em 2001 eu comecei a trabalhar como agente de saúde. Eu via o meu sofrimento, o sofrimento do meu povo, e pensava que poderia fazer muito mais. Só que eu não tinha condições de pagar o curso. Então pensei: faço matemática, aí uso o salário de contador para pagar um curso de direito e depois uso o salário de advogado para pagar medicina, explica.

A oportunidade, para a alegria de Silva, chegou bem antes. Cursando o terceiro ano de matemática, ele se inscreveu para uma das duas vagas oferecidas em medicina no vestibular indígena da UnB. A prova tinha 100 questões e foi realizada por cerca de 400 pessoas.

Eram 50 perguntas de matemática e 50 de português. Na época eu fazia o curso e ainda dava aula particular, então acho que isso me ajudou bastante, me colocou em vantagem. Não fui o primeiro colocado, mas entrei. O importante é que deixei 199 para trás, não é?, brinca.

Segundo o indígena, a vinda para o Distrito Federal não foi fácil. Silva abriu mão de acompanhar as primeiras descobertas do filho, que na época tinha nove meses, e da vaga conquistada como professor em um concurso público. Para subsidiar os gastos dele na cidade, a Funai dava uma bolsa de R$ 900 – nem metade do que ele ganharia se começasse no novo emprego.

Outros fatores que pesavam para o indígena eram a distância dos costumes da tribo e o preconceito. “É como se você tivesse algo alimentando sua alma e de repente isso parasse. Você tinha um laço, tinha um vínculo com a comunidade, com o seu povo. Com 15 dias, tinha pessoas quase em depressão. A gente sofreu muito, também por falta de aceitação. O colega que entrou no curso comigo não aguentou e acabou se suicidando.”

Em sala de aula, nem sempre a situação ficava melhor. Silva conta que alguns colegas o procuravam e se dispunham a ajudá-lo caso ele tivesse alguma dificuldade com as disciplinas. Ainda assim, ele nunca tinha com quem fazer trabalhos de grupo ou provas em dupla.

Eu me sentia como elemento estranho que estava no meio dos intelectuais, talvez até num local indevido, lembra. `Eu não conhecia ninguém, fora que tinha pouca noção do curso. A sociedade se diz incluente, mas continua excludente. É um caso raro um índio entrar na universidade e conseguir chegar ao final com êxito. Tem turmas que não nos incorporam mesmo. Teve até caso de colega em outras instituições sendo barrado por colega no Enade com o argumento de que iam diminuir a nota da turma.

Com a graduação concluída, Silva espera atualmente pelo resultado da prova de residência em Saúde da Família, feita no Hospital Regional de Planaltina. O indígena também deve começar a trabalhar em uma unidade de saúde no interior de Goiás. Depois de concluir o curso, ele volta para a aldeia.

Volto para prestar serviço ao meu povo, que me indicou para vir para cá. Sabe, algumas vezes eu tive muito medo de que não desse certo e pensei em desistir, especialmente quando me sentia bastante sozinho. Mas eu acreditei que tudo que eu estava sacrificando valeria a pena, porque acho que vou poder contribuir bastante para a minha aldeia.

O diretor da Faculdade de Medicina da UnB, Paulo Cesar de Jesus, diz que a instituição prestou todo suporte possível ao indígena, especialmente nos primeiros semestres do curso, quando ele chegou a reprovar em algumas disciplinas. O professor afirma que a conquista de Silva é motivo de comemoração para toda a comunidade acadêmica.

A gente fica muito satisfeito porque isso faz parte de um complemento de uma dívida histórica com a comunidade indígena. Um dos papéis da universidade pública é fazer a inclusão social. Agora, fica a expectativa de que ele realmente volte para a comunidade dele e a ajude, já que ele, melhor que qualquer um, conhece as tradições e a cultura do povo dele.

Atualmente a UnB tem 53 estudantes indígenas. De acordo com a universidade, 90 alunos ingressaram na instituição por meio de um convênio firmado com a Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2004.

Convênio

Atualmente a o vestibular indígena oferece dez vagas por semestre nos cursos de agronomia, ciências biológicas (licenciatura/bacharelado), medicina, ciências sociais, engenharia florestal, nutrição e enfermagem. As provas acontecem em cidades do Acre, Amapá, Amazonas e Roraima.

Olhar a lista das cidades onde acontecem a seleção foi um fator essencial para eu decidir prestar UnB`, diz Silva. A gente não precisa se deslocar por grandes distâncias e gastar muito sem saber se vai dar certo, é a universidade que vem para onde a gente está.

Para ajudar na adaptação dos estudantes, a UnB oferece aulas de biologia, química, física, matemática e língua portuguesa. Diretor da Faculdade de Medicina, Paulo César de Jesus diz que a medida foi adotada diante da dificuldade que os indígenas tinham em áreas básicas.

Alguns reprovaram nas disciplinas iniciais muitas vezes, então o decanato e as faculdades fizeram cursos de nivelamento. Também havia monitores para os acompanhar e ajudar a fazer trabalhos, além de acompanhamento direto, no caso da medicina, da coordenadora e da pedagoga do curso, afirma.

Paralelamente, a Funai dá uma bolsa aos índigenas para que eles possam arcar com os custos de hospedagem, alimentação, transporte e apoio escolar. Segundo o órgão, ano passado foram investidos R$ 429.235,96 mensais para 1.069 indígenas.

A Funai também mantém parcerias semelhantes com as universidades federais de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Pará, Paraná, Roraima, Santa Catarina, São Carlos e da Grande Dourados. Também há acordos com as estaduais de Feira de Santana, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, com os institutos federais do Espírito Santo e de Minas Gerais, além da PUC de São Paulo, Universidade Católica Dom Bosco, Anhanguera, Centro Universitário da Grande Dourados e Universidade do Oeste de Santa Catarina.

De acordo com a instituição, o primeiro convênio foi firmado em 2000, com a Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), para oferecer licenciatura intercultural para os povos indígenas. Já o mais recente foi estabelecido com o Instituto Federal do Espírito Santo no ano passado.

Atikuns

Um levantamento feito pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, subordinada ao Ministério da Saúde, apontou a existência de 7.924 membros da tribo. A aldeia fica na Serra do Umã, no sertão pernambucano, e tem um raio de aproximadamente 20 quilômetros. A base da economia dos indígenas é a agricultura. Eles moram em casas de alvenaria e falam português.

“A nossa língua se perdeu há cerca de 150 anos. Acho que tem só umas 50 expressões ainda mais conhecidas”, explica Silva. “Por exemplo: sarapó, que é cobra grande e comestível, jiboia.”

Inicialmente nômades, os atikuns já passaram por Alagoas, Ceará, Sergipe e vários pontos de Pernambuco até chegar à serra. A vida no local, de acordo com o indígena, é “bastante dificultosa”.

“Chove apenas três meses do ano, quando chove. É bastante difícil”, diz. “Você mora na aldeia, mas a aldeia não tem tudo. Você precisa ir à cidade para comprar, vender ou trocar coisas que você não consegue produzir.”

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