Como as escolas podem ensinar o pensamento científico desde a educação básica

ÉPOCA  – ANDRÉIA MICHELON GOBBI – 02/09/2015

Começo com uma questão: como é possível ensinar o pensamento científico nas escolas, uma vez que ela mesma distanciou e mistificou a figura dos cientistas? Quando se fala em Educação Científica ou Alfabetização Científica – expressões que estão em voga nos meios acadêmicos –, é necessário pensar na abordagem que a escola tem dado ao ensino de Ciências. Um dos aspectos a ser considerado está justamente na utilização do termo “Ciência” apenas para o conjunto de saberes que tratam do componente curricular deCiências Naturais (no Ensino Fundamental) ou às disciplinas deFísica, Química e Biologia (no Ensino Médio). O termo “Ciência” é muito mais abrangente e envolve todas as áreas, visto que formam o conjunto de conhecimentos científicos já consolidados, que constituem os conteúdos da base nacional comum.

Outro fator determinante para o distanciamento entre a escola e a figura dos cientistas é a transposição didática dos conhecimentos científicos, isto é, a forma como o conteúdo é passado para o aluno. É preciso levar em consideração a relação dos saberes escolares com a realidade dos estudantes em questão. É preciso ressaltar que realidade não se trata do contexto socioeconômico, mas do cotidiano, das vivências, do mundo que nos cerca. E como pensar na realidade de forma isolada, sem estabelecer conexões entre as diversas áreas? Faz-se necessário ensinar os estudantes a pensar como cientistas. A tarefa é complexa e requer método e organização.

Não podemos ensinar Ciência hoje com metodologias utilizadas há 20 anos. Os estudantes têm acesso à informação de forma fácil e rápida, principalmente com o advento da internet. Além disso, já não é mais papel do professor “dar informações” ou “passar conteúdos”, mas sim organizar, sistematizar e mediar informações, garantindo que elas se transformem em conhecimento efetivo. Nós, profissionais da educação, temos um papel fundamental, ainda nas séries iniciais: não destruir a curiosidade das crianças. Instigar essa característica, que é inata, é essencial. A motivação que o professor promove nos ambientes escolares pode despertar vocações ou aniquilar a ânsia pelo saber.

Os Quatro Pilares da Educação para século XXI (Unesco, 1999) –Aprender a Conhecer, Aprender a Fazer, Aprender a Viver com os Outros e Aprender a Ser – exigem a elaboração de didáticas que vão ao encontro do desenvolvimento de habilidades e competências que transcendem a resolução de exercícios de fixação e questionários decorados após uma aula expositiva. Ao buscar situações de aprendizagem que levam os estudantes a tomar postura de cientistas, podemos propor a resolução de problemas como ponto de partida. A questão é que não se tratam de problemas matemáticos, no qual já se espera uma resposta exata associada a um conceito de grandeza, e sim de problemas oriundos de observações feitas por meio das vivências dos estudantes em seu bairro, cidade, escola, família.

Primeira etapa: identificar o problema

Como professora de Metodologia Científica, trabalho o método científico como tema transversal, buscando a investigação como ação principal na busca da resolução de problemas que os estudantes apresentam, e não a partir de um tema imposto. A princípio, os estudantes trazem o problema e, na sequência, planejam o estudo, constituindo um documento escrito que resulta no projeto de pesquisa. Após a discussão com os professores e análise da viabilidade de execução do projeto, inicia-se a investigação, com a orientação de um ou mais professores da área do conhecimento em que o trabalho mais se aproxima.

Ao longo da investigação, os estudantes esclarecem suas dúvidas em sala de aula e por meio das redes sociais, utilizando ferramentas de tecnologia digital para a construção do conhecimento. Dependendo do objeto de estudo do trabalho, visitam empresas e universidades, conversam com profissionais de diferentes ramos, coletam informações, buscam materiais e estabelecem uma forma cooperativa de aprender. Além disso, os estudantes aprendem a utilizar o editor de textos e se apropriam das normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), viabilizando o ensino das questões éticas, bem como a forma adequada de referir-se a conhecimentos de outros nas produções escritas, respeitando as propriedades intelectuais. Ao compilar textos e registros que resultam nas referências que subsidiam a parte teórica dos trabalhos e que se relacionam com os saberes aprendidos na escola, compreendem as informações e obtêm as respostas para os fenômenos que se apresentam ao passo que a pesquisa avança.

Quando os estudantes chegam a um resultado, devem analisá-lo e explicá-lo, de acordo com os pressupostos dos saberes que embasam a teoria que envolve a investigação. E assim compreendem que a investigação não resulta em uma verdade absoluta, podendo ser retomado e remodelado, levando a novos questionamentos e a novas investigações, como a Ciência procede de fato.

Para apresentar os resultados, eles escrevem relatórios de pesquisa, dentro de padrões e critérios específicos, e confeccionam os painéis que servirão de base para apresentação oral em uma mostra de trabalhos da escola. Após a realização da mostra, os relatórios devem ser transformados em artigos científicos, agrupados nos anais do evento, que ficam disponíveis na biblioteca da escola.

Estudantes como protagonistas

No contexto geral, professores e estudantes praticam a teoria da ação dialógica de Paulo Freire, protagonizando interação, observação, experimentação, registro, comparação, intervenção, organização, comprometimento e responsabilidade, cumprindo com os pressupostos dos quatro pilares da educação. Ao longo do processo investigativo, automaticamente, os estudantes aproximam seu modo de pensar e enxergar o mundo ao pensamento científico. Trabalhando dessa maneira, é possível que os estudantes sejam protagonistas no processo de ensino/aprendizagem e, de acordo com suas capacidades cognitivas, elaborem e estabeleçam relações entre os saberes aprendidos na escola e em sua vida.

Vencedora do Prêmio Jovem Cientista deste ano, na categoria Ensino Médio, a estudante Joana Meneguzzo Pasquali vivenciou essa sequência didática durante três anos, apresentando diferentes problemas de pesquisa em cada uma das séries. O problema apresentado no 3º ano do Ensino Médio foi a adulteração no leite UHT, divulgada em diversos meios de comunicação. Pelo fato de residir no Rio Grande do Sul, Estado onde as fraudes foram descobertas, a questão se apresentou como um problema social, de saúde pública e de negligência, que necessitava de uma solução para os consumidores identificarem se o produto contido na embalagem corresponde ao descrito no rótulo.

Joana realizou todo o processo de investigação e apresentou o resultado na 3ª mostra da escola. Como o conteúdo do trabalho estava diretamente ligado ao tema da 28ª edição do prêmio,“Segurança Alimentar e Nutricional”, inscrevemos o trabalho na categoria Ensino Médio. A alegria e a emoção de ter o trabalho premiado foram indescritíveis. Mais do que a premiação e o reconhecimento de um trabalho que envolve muitas pessoas, é o maior indicador de que estamos no caminho certo, promovendo aeducação científica, levando os estudantes a desenvolver o pensamento científico, por meio da resolução de problemas identificados na sociedade, despertando o espírito de cidadania e autonomia na construção do saber.

Educar para a Ciência é formar pessoas buscando um estreitamento das relações entre o universo dos centros acadêmicos e da educação básica. Penso que este seja um dos motes para que a Educação Científica seja mais efetiva. Desse modo, os estudantes estarão aptos a ingressar no Ensino Superior dotados de conhecimentos prévios fundamentais para que seus estudos contribuam com pesquisas e processos que melhorem a sociedade e o mundo em que vivemos.

 

 

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